Artigo publicado originalmente em Junho de 2006 e republicado posteriormente em 25/01/2008 no site da Universidade do Futebol.
http://www.universidadedofutebol.com.br/Artigo/1446/Qual-e-o-segredo-do-futebol-brasileiro
Por que o país é cinco vezes campeão do mundo e produz tantos jogadores de talento?
Observação do autor: Este artigo foi escrito pouco antes da Copa do Mundo de 2006. Ainda empolgado com o desempenho apresentado pelo Brasil na Copa das Confederações e com a incrível temporada de 2003 no Cruzeiro, me deixei levar por alguns impulsos, portanto, algumas considerações feitas no início do texto não julgo mais pertinentes diante do cenário atual do futebol brasileiro. Vamos ao texto:
Temos Pelé, Romário, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, entre os jogadores que já foram eleitos como melhores do mundo, alguns destes por mais de uma vez. O Campeonato Brasileiro é tido como o mais difícil e disputado do mundo, quase sempre com pelo menos oito equipes em condições de vencê-lo, diferentemente dos outros países em que existem apenas dois ou três grandes clubes. É também um “celeiro” de craques, que nas últimas décadas tem abastecido o milionário futebol europeu.
Os jogadores brasileiros que trabalharam na Europa costumam dizer que os melhores profissionais do futebol (técnicos, preparadores físicos, fisioterapeutas, etc.) são os brasileiros. Tal afirmação parece ter algum fundamento quando ouvimos os relatos desses atletas a respeito da metodologia e conduta adotadas pelas comissões técnicas de boa parte dos clubes europeus.
Existem situações verdadeiramente absurdas, como por exemplo: “Treinamento lá é só corrida de seis ou sete quilômetros e joguinhos com campo reduzido (Lyon e Bayer Leverkusen)”; “Ao acabar de cicatrizar uma lesão muscular na panturrilha, o preparador físico queria me colocar para subir a arquibancada saltando (Benfica)”; “fisioterapia não existe, é tudo por conta própria, cada um se virando para fazer tratamento (Borussia Dortmond)”; “Os testes físicos são ultrapassados, da década de 80, e são aplicados por um médico clínico geral (Real Madrid)”.
Baseando-se nesses relatos, podemos acreditar que o futebol brasileiro não é o melhor somente por conta dos jogadores talentosos que produz, mas também devido à constante busca por atualização de conhecimentos científicos por parte dos técnicos, preparadores físicos, fisiologistas, fisioterapeutas, etc.. Esses profissionais têm acesso aos mais atuais conceitos e descobertas das ciências do esporte aliados à cultura e tradição vitoriosa dessa modalidade no nosso país. Algumas das escolas de educação física brasileiras são de excelente nível, investindo constantemente em pesquisa e material humano.
Além disso, o profissional de educação física brasileiro, inserido no nosso contexto cultural, é extremamente criativo, tem jogo de cintura, improvisa, busca alternativas quando diante das dificuldades e com isso cresce e encontra soluções inovadoras.
Na Alemanha, que já foi considerada a “Meca” da preparação física, parece que alguns profissionais pararam no tempo, se acomodaram e assim, ainda utilizam métodos de treinamento que eram usados na década de 80 – como as corridas contínuas de longa distância, por exemplo.
O componente ambiental-cultural
Vejamos os componentes externos, aqui chamados de fenótipo, e que envolvem os seguintes aspectos: treinamento, nutricionais, sócio-culturais, geográficos e clínicos.
O Brasil talvez seja um dos países mais afetados pelo fenômeno futebol. Em época de Copa do Mundo, nos jogos da seleção, o país literalmente pára!
Muito do nosso sucesso futebolístico se deve também ao contexto de nossa história, incluindo aí a história desse esporte no Brasil. Quando Charles Muller trouxe a primeira bola e o primeiro jogo de uniformes, encontrou aqui as condições ideais e a adesão foi instantânea: país de clima tropical, ou seja, o futebol poderia ser praticado em qualquer época do ano sem as restrições dos rigorosos invernos do hemisfério norte; havia muito espaço para a prática, inclusive nas cidades grandes; um povo sedento por novidades, musical, alegre, de espírito aberto e ávido por um jogo que se mostrou extremamente democrático, pois tem regras fáceis de entender, é barato e pode ser praticado em qualquer lugar e por qualquer pessoa.
Como paixão nacional estabelecida e sendo a atividade principal de lazer do povo, a quantidade de gente que joga bola no Brasil é muito grande, daí ser esse também um dos motivos de sempre surgirem tantos bons jogadores: quanto maior a oferta de matéria prima, maior será o número de selecionados de boa qualidade.
Quanto ao contexto cultural-sócio-econômico, sabe-se que o menino pobre brasileiro já nasce tendo de superar as dificuldades e obstáculos que a vida lhe impõe. Ele brinca com aquilo que estiver ao seu alcance: lata, pedra, pau, etc.. Ele cresce livre, solto: corre, salta, pula, rola! Brinca, briga, machuca, sara, bate, apanha! Pula o muro, trepa em árvore pra roubar fruta no vizinho, nada no rio, na praia, na lagoa, no açude; corre no pasto, corre de boi bravo, toca boiada. Trabalha na rua pra ganhar uns trocados. Joga bola no terreno baldio, na rua, na quadra, no pasto, na areia da praia… É piso seco, é molhado, é paralelepípedo, é cheio de montinho; na subida, na descida, cheio de buraco!
A bola é grande, é pequena, é dura, é mole; bola de meia, bola furada, murcha, oval, com caroço, bola que quica, que não quica, que vem redonda, vem “quadrada”, imprevisível. Ele joga descalço, sente a bola, joga de tênis velho furado, de chuteira surrada, joga controle, dupla, paulistinha, rebatida, pelada, “ranca”; joga sozinho, 1×1, 2×2, gol a gol, “bente altas”, brinca de “embaixadinhas”, joga bola mesmo que não haja bola.
É o jogo informal, onde nada é padronizado ou homogêneo: local, piso, bola, número de participantes, idade e tamanho dos participantes… É liberdade e improvisação pura!
E a miscigenação? Negro, branco, índio, mulato, cafuzo, mameluco, caboclo! As dimensões são continentais: diferentes colonizações, culturas, crenças, tradições, folclore, festas, danças, celebrações, sotaques, pratos típicos, tipos de alimentos, climas, relevos, vegetações. Tem samba, frevo, capoeira, tem ginga, molejo, jogo de cintura, malandragem, esperteza! Pensa rápido!
Tudo isso junto é, em linguagem acadêmica: psicomotricidade, desenvolvimento motor através de uma vivência motora rica, variada e lúdica, desenvolvendo de maneira natural estratégias extremamente rápidas de percepção, processamento de informações e tomada de decisões. São os programas motores generalizados, uma ampla gama de gestos motores armazenados no seu “HD” (sistema neuro-motor) que vão resultar em habilidade, agilidade, técnica, aguçada visão periférica (percebe de maneira mais rápida e precisa um maior número de estímulos / informações do ambiente para o processamento e a tomada de decisões), rapidez de raciocínio, capacidade de improvisação e adaptação, precisão, inteligência específica!
Resumindo: Nosso estilo de vida e nossa cultura fazem com que o menino tenha de se virar, que se adaptar, tenha que criar, se safar, ser rápido, esperto, achar soluções. A nossa cultura não só valoriza como até glamouriza isso. É a ginga, a malandragem, o famoso jeitinho brasileiro pra resolver tudo, infelizmente, nem sempre de maneira ética e honesta, é verdade… basta ver os nossos políticos!
No histórico de vida de quase todo grande atleta de futebol estão presentes condições como as citadas acima, ou seja, geralmente, eles não estudaram / estudam, tendo assim mais tempo livre para praticar, aprendendo livre e naturalmente a fazer “misérias” com uma bola de futebol. Thierry Henry, jogador da França, fez um pronunciamento semelhante durante a Copa do Mundo de 2006, referindo-se à qualidade dos jogadores brasileiros.
Hoje em dia, com a diminuição dos espaços para prática e o aumento da violência, conseqüências do crescimento das grandes cidades, essas condições estão ficando mais raras. Elas ainda ocorrem nas cidades do interior e, nos grandes centros urbanos, alguns clubes e escolas bem estruturados (Minas Tênis Clube, por exemplo) têm procurado suprir esse aprendizado natural com a implantação dos cursos básicos de esportes.
Nesses cursos, as crianças passam por diversas modalidades aplicadas de maneira variada, lúdica, livre, criteriosamente pedagógica e progressiva para ser também prazerosa, especialmente entre os 6 e os 12 anos de idade, visando uma rica formação psicomotora que resulta em um amplo acervo / repertório motor. Assim, a partir dos 13 – 14 anos, o menino estará pronto para iniciar o treinamento técnico a ser aplicado de maneira sistematizada nas categorias de base de um clube de futebol já com uma incrível bagagem motora.
Componente genético
Como fatores internos, chamamos o genótipo ou, os aspectos hereditários: biomecânicos, fisiológicos, morfológicos, cognitivos e emocionais. Ao observarmos as imagens de lances de jogadores como Garrincha, Pelé, Romário, Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, etc., percebemos que esses possuíam / possuem, também, excepcionais capacidades físicas que os faziam / fazem se destacar bastante em relação à média nesse quesito, especialmente velocidade, força e potência muscular. Para atletas fenomenais como esses, não há como estabelecer mensurações sobre qual componente teve maior peso na formação de seus talentos.
O componente genético-hereditário, no qual o biotipo em todas as suas variáveis como peso, estatura, proporções corporais, estrutura óssea; somadas às características individuais do sistema neuro-motor como o número de fibras de contração rápida, número de neurônios, de sinapses e unidades motoras, grau de mobilidade articular, etc., envolve também algumas características psíquicas que possam ser herdadas como: temperamento, personalidade, rapidez de raciocínio, timidez ou extroversão, etc..
Penso que atletas assim tão talentosos são o resultado de uma complexa interação de ambos os fatores: ambiental-culturais e genético-hereditários, sendo impossível estabelecer uma distinção exata e/ou prevalência de um componente sobre o outro.
A melhor coisa que pais ou educadores podem fazer pelos seus filhos / alunos em termos de aprendizagem motora é incentivá-los a brincar, se divertirem, viverem ao máximo todas aquelas atividades prazerosas e simples de uma infância saudável: correr, pular, rolar, saltar, jogar por prazer. É também muito gratificante para um pai ver a expressão de satisfação de um filho quando está com os amigos correndo e brincando livremente. Como diz o comercial de cartão de crédito: não tem preço!
* Francisco Adolfo Ferreira é formado em educação física pela Universidade Federal de Minas Gerais, com aperfeiçoamento em futebol e futsal pelas Faculdades Integradas Castelo Branco-RJ e pós-graduação em treinamento esportivo na Universidade Gama Filho-MG. Atualmente, trabalha como preparador físico do time profissional do Cruzeiro Esporte Clube.
Contato:
http://www.cruzeiro.com.br/cruzeiro/profissional/comissaotec/
Escreva seu comentário