Entrevista ao site da Universidade do Futebol em 09/04/2010.
http://www.universidadedofutebol.com.br/Entrevista/10721/Francisco-Ferreira-do-Cruzeiro
“Ninguém é uma ‘ilha’, ninguém sabe tudo”. A frase que fecha esta entrevista concedida à Universidade do Futebol representa bem a postura do professor Francisco Adolfo Ferreira. Preparador físico do departamento de futebol profissional do Cruzeiro, ele concilia em sua trajetória a experiência real, no convívio com atletas e demais integrantes ligados às Ciências do Esporte, com a base acadêmica, esfera da qual não se desgarrou.
Graduado em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ferreira é especialista em Treinamento Esportivo pela Universidade Gama Filho e compôs durante cinco anos o corpo docente da disciplina de futebol da Faculdade Estácio de Sá (MG). Atualmente, coordena pós-graduação nas Faculdades Promove e Funorte. Mas muito antes do desenvolvimento dessas competências já tinha a certeza de que atuaria no futebol.
Chico, como é tratado pelos mais próximos, tem parentes ligados à história da modalidade em Belo Horizonte. Um de seus tios foi preparador físico e técnico das duas maiores forças locais. O outro jogou nas décadas de 1940 e 50 no futebol carioca e também treinou diversas equipes, como Corinthians e Fluminense. Por intermédio do pai, teve a infância delineada com diversas idas ao Mineirão.
No Cruzeiro, agremiação à qual está atrelado há 11 anos, Ferreira tem a parceria dos experientes José Mário Campeiz e Quintiliano Lemos na preparação física do grupo principal. Com integração, respeito e estudo, eles conduzem a equipe celeste às fases decisivas do Estadual e da Copa Libertadores da América.
“Posso dizer que o Cruzeiro foi uma grande escola no sentido de ter permitido a convivência com vários treinadores e preparadores físicos de renome e também a possibilidade de perceber na prática, ao longo desses anos, aquilo que é viável ou não, o que dá certo e o que não dá, de acordo com a cultura do futebol que envolve calendários, grupo heterogêneo de atletas, diferentes escolas, diferenças culturais, aplicabilidade e o casamento entre teoria e prática”, explicou.
Dentre outros temas, Ferreira fala sobre as novas perspectivas do clube, o perfil das categorias de base, elaboração de treinamentos e por que acredita que a função de preparador físico não deverá entrar em desuso em futuro próximo.
“Acredito que a função do preparador físico que trabalhe (também) de forma isolada as valências físicas em vários momentos do calendário seja imprescindível. Ainda não creio que se possa atingir níveis ótimos de performance sem treinar na sala de musculação, sem treinar agilidade, resistência de força, etc.”.
Universidade do Futebol – Além do trabalho no Cruzeiro, o senhor acumula passagens pelo futebol internacional e pelo Minas Tênis Clube. Em primeiro lugar, conte um pouco sobre sua formação e a trajetória no esporte de alto rendimento.
Francisco Ferreira – Sou de uma família de futebolistas de Minas Gerais. Meu saudoso tio Paulo Benigno Ferreira foi o pioneiro da preparação física no futebol mineiro. Treinou aquelas fantásticas equipes do Cruzeiro das décadas de 1960 e 70, depois foi preparador físico e treinador daquele também inesquecível Atlético-MG de 76, 77.
Foi ele quem lançou o Reinaldo, então com 16 anos de idade, na equipe profissional. Outro tio, David Ferreira, o Duque, teve passagens vitoriosas por vários grandes clubes brasileiros. Meu pai, um entusiasta do bom futebol, me levava ao Mineirão desde que me entendo por gente.
Então, não podia dar outra coisa: paixão pelo futebol e pelo esporte, curso de Educação Física, cursos de aperfeiçoamento, início em colégios com futsal e aulas de Educação Física, nas categorias de base, como preparador físico, no Minas Tênis, com musculação e futsal, equipes profissionais, exterior.
Passei também a lecionar a disciplina de futebol no ensino superior, ministrando cursos de especialização e aperfeiçoamento em futebol, preparação física, etc. Tudo dentro de uma sequência que em muito contribuiu para a minha formação e meu aprendizado.
Universidade do Futebol – Como se dá a interação entre a preparação física – o Cruzeiro conta com outros dois profissionais dessa área (José Mário Campeiz e Quintiliano Lemos) – e comissão técnica, departamentos médico e de fisiologia, e com o próprio trabalho realizado nas categorias de base, local onde o Cruzeiro tradicionalmente colhe bons frutos?
Francisco Ferreira – O trabalho no Cruzeiro é integrado. Não existe melindre entre os departamentos e, assim, temos liberdade para opinar, debater, enfim, expressar nossos pontos de vista em busca de soluções que tragam benefícios para o clube.
O Zé Mário e Quintiliano são profissionais do mais alto gabarito. Estamos sempre buscando nos atualizar, sempre antenados no que há de mais moderno. Trabalhamos de modo inter, multi e transdiciplinar. Nosso ambiente é muito bom e temos ótimo relacionamento com todos os setores.
As categorias de base, que já eram referência, darão um salto enorme em breve. Temos profissionais capacitados desenvolvendo projetos importantes e pioneiros na área do futebol. Cito: Eduardo Pimenta, Alexandre Barroso, Daniel Coelho, Roger Galvão, dentre outros.
Universidade do Futebol – O senhor atua há mais de uma década no Cruzeiro. Como avalia a evolução do departamento de futebol do clube mineiro e quais são os benefícios e os pontos negativos de se manter ligado a apenas uma instituição durante tanto tempo? Considera interessante o profissional responsável pelo condicionamento dos atletas acompanhar o treinador ou pensa que ele deveria ficar mesmo atrelado à agremiação?
Francisco Ferreira – O Cruzeiro, que há muito prima pela organização, está sempre buscando inovações em todos os setores, seja na parte administrativa, ou na técnica. O grande responsável por essa modernização é o professor Emerson Silami, fisiologista que veio para o clube em 1990.
Desde então, o Cruzeiro tem promovido o envolvimento com a comunidade acadêmica e conseguido o retorno em conhecimento científico. Somos um grande campo para a pesquisa científica.
Quanto ao fato de permanecer muito tempo num mesmo clube, penso que há como desvantagens o fato de não se conseguir uma projeção maior, o que reflete em menor retorno financeiro e menores possibilidades de se alçar novos voos; como vantagens, há certa estabilidade e um envolvimento e identificação maior com o clube, além de uma maior facilidade de aplicação dos métodos de treinamento.
Posso dizer que o Cruzeiro foi uma grande escola no sentido de ter permitido a convivência com vários treinadores e preparadores físicos de renome e também a possibilidade de perceber na prática, ao longo desses anos, aquilo que é viável ou não, o que dá certo e o que não dá, de acordo com a cultura do futebol que envolve calendários, grupo heterogêneo de atletas, diferentes escolas, diferenças culturais, aplicabilidade e o casamento entre teoria e prática.
Dentre os preparadores físicos, cito alguns com quem trabalhei e trabalho como sendo dos melhores: José Mário Campeiz, Quintiliano Lemos, Antônio Mello e Gilvan Santos.
Sobre a segunda questão, acredito ser um tendência a efetivação das figuras do preparador físico, do treinador de goleiros, etc., assim como já acontece no São Paulo, por exemplo. Esse tipo de filosofia possibilita a aplicação de trabalhos de médio e longo prazo, permite a padronização do trabalho, uma vez que, não havendo a troca constante do preparador físico chefe, a filosofia/metodologia também não muda.
Universidade do Futebol – Qual a fronteira entre a participação do preparador físico no amparo psicológico aos atletas, e o trabalho propriamente dito de um profissional específico da área? Você aborda conceitos de auto-ajuda e neurolinguística no trabalho diário do Cruzeiro?
Francisco Ferreira – Todo profissional do esporte deve ter um pouco de psicólogo. É importante ter feeling para perceber o emocional do grupo de atletas, afinal, jogador de futebol também é gente: se apaixona, fica deprimido, tem problemas de família, etc. Após detectarmos que há alguma coisa afetando o emocional do atleta, chamamos o psicólogo e falamos do caso para que ele faça a abordagem adequada.
Estamos o tempo todo buscando elevar o ânimo dos atletas com palavras de ordem, de comando, de incentivo, de reforço positivo. Outra abordagem muito importante é no campo espiritual, por esta razão acho o trabalho desenvolvido por Atletas de Cristo, por exemplo, muito importante.
Universidade do Futebol – A adaptação fisiológica que o atleta vai ter será específica da posição, ou a própria característica do jogador para o modelo de jogo do treinador o levará a essas particularidades? E como as capacidades do atleta, de uma forma geral, serão relacionadas à forma coletiva, na aplicação do futebol “formal”?
Francisco Ferreira – Há uma seleção natural desde o início, quando o garoto vai fazer testes no clube. Dentro desse processo, há inúmeras variáveis e a história de cada um tem suas peculiaridades. A quase totalidade dos atletas, exceção dos goleiros, claro, muda de posição desde a base até se chegar ao profissional. As adaptações irão ocorrer naturalmente.
Um exemplo interessante que temos notado aqui no Cruzeiro é o perfil cardiorrespiratório dos atletas: se até a década de 1990 os atletas, ao realizarem os testes de lactato e limiar anaeróbio, por exemplo, apresentavam características mais “aeróbias”, com uma velocidade de limiar mais alta, menor FC (frequência cardíaca), sugerindo características mais próximas de um meio fundista: coração grande, predominância de fibras oxidativas, etc. Hoje, percebemos um perfil mais “anaeróbio”, mais velocista, de acordo com as características do futebol atual.
Como a velocidade depende exclusivamente da genética, acredito que a seleção natural está sendo em função dessa valência específica desde a base, ou seja, o jogador lento não terá muitas oportunidades.
É consenso que uma das qualidades de um bom treinador é explorar as melhores características individuais do atleta em prol do coletivo, e não o contrário, tentando adaptar a todo custo o atleta àquilo que o treinador possa exigir de maneira inflexível. Não dá para violentar as características individuais, pois ninguém consegue fazer aquilo para o que não está apto.
Exceção à regra seria o caso de um atleta realmente fora de série, capaz de decidir em lances geniais o resultado das partidas. Nesse caso, o coerente seria criar uma organização de jogo em função desse talento.
Universidade do Futebol – Qual a funcionalidade prática do scout técnico para o desenvolvimento do seu trabalho de campo com os atletas do Cruzeiro?
Francisco Ferreira – Penso que as análises estatísticas são importantes como feedback para o treinamento físico e técnico na medida em que nos fornecem, por exemplo, o número de tiros em suas respectivas distâncias, de saltos, giros, combates individuais, de chutes, cabeceios, etc.
Devemos elaborar o treinamento de acordo com a realidade da prática, senão vejamos: a maioria dos tiros dentro de uma partida de futebol acontecem em distâncias de até 15 metros. Por que dar treinos com tiros de 50 ou 100 metros, então?
Outro exemplo: se o atacante, atleta que mais chuta durante o jogo, realiza em torno de 10 a 12 finalizações, porque dar treinos de finalização com 30, 40 chutes e, ainda por cima, para todos os atletas indistintamente, sem levar em conta a posição?
O que é velocidade no futebol?
Universidade do Futebol – O que diferencia hoje o trabalho entre preparadores físicos no Brasil, já que hoje o conhecimento está muito mais acessível? Existem modelos e métodos diferentes sendo aplicados por diferentes preparadores físicos no nosso país? Isso pode ser o diferencial para que algumas equipes vençam mais do que outras?
Francisco Ferreira – Vejo que o conhecimento está acessível, que muitos profissionais de clubes pequenos conseguem muitas vezes os mesmos resultados em termos físicos para seus atletas em comparação com os atletas de grandes clubes. Percebo, também, que há diferenças culturais, metodológicas, filosóficas que, ao longo dos 11 anos que estou aqui no Cruzeiro, me permitiram ver preparadores físicos dos mais diversos tipos: um gosta de aeróbio e não gosta de musculação, outro é “tarado” por musculação, outro adora a caixa de areia, e por aí vai.
Como o conhecimento está realmente democratizado, o aspecto físico está muito nivelado, assim, o que ganha jogos e campeonatos é uma somatória de detalhes – a organização, a estrutura, o plantel homogêneo de bons jogadores e com pelo menos alguns daqueles ditos diferenciados, os talentos.
Há outros fatores que podem ajudar, como “camisa”, tradição, torcida, força política, etc. No final, fica a máxima de que com grupo bom se ganha, com grupo mais ou menos dá até para fazer boa figura, e grupo fraco não se chega a lugar algum.
Universidade do Futebol – O senhor acompanha o que se vem fazendo na Europa em termos de preparação física? Quais inovações e caminhos a preparação física tem tomado por lá? Nesses centros, treina-se “menos”, ou se treina de modo “diferente”?
Francisco Ferreira – Acompanho muito através dos atletas que retornam da Europa para o Cruzeiro. Eles geralmente dizem que se treina pouco, que os treinos são em sua maioria treinamentos de performance, os famosos jogos em campo reduzido (Balson, 1999).
A última moda no aspecto preventivo são os treinamentos funcionais. Na verdade, eu gostaria muito de poder assistir às sessões de treino aplicadas pelo Mourinho para ver o que ele realmente apresenta de novidade.
Universidade do Futebol – Na Holanda, por exemplo, não há a figura do preparador físico, e sim a do assistente-técnico. Como é a sua relação de estruturação de trabalho com o treinador? Como o treino é estruturado?
Francisco Ferreira – Aqui ainda trabalhamos da maneira tradicional, com os especialistas de cada área dando sua contribuição em prol do grupo de atletas, ou seja, uma comissão multidisciplinar e que saiba trabalhar de maneira inter e transdisciplinar. Cada um traz sua opinião, sua avaliação e entrega àquele que toma a decisão final, o treinador.
Mais uma característica do bom treinador é ter a sabedoria para ouvir, debater e acatar, quando for o caso, a opinião de sua comissão técnica. Aquele que tem a dose certa de autoconfiança e de confiança em sua comissão técnica sai em vantagem.
A elaboração do treino deveria obedecer a inúmeros critérios: calendário de jogos, momento da competição, prioridade de competições, estado físico dos atletas, viagens, tempo para recuperação, contusões, suspensões, convocações, etc.
Universidade do Futebol – Como jogos recreativos e/ou esportes relacionados ao futebol (como o futevôlei e o futsal, por exemplo) podem auxiliar na preparação física do futebol profissional?
Francisco Ferreira – Modalidades derivadas do futebol de campo podem ser um ótimo recurso acessório para a manutenção dos aspectos físico e técnico. No futebol de alto rendimento, o calendário de competições não permite que se “invente” muita coisa, assim, podemos usar o futevôlei, por exemplo, como recurso recreativo e regenerativo quando necessário.
Não dá para usar é como método de desenvolvimento, de ganho da forma física, pois não há especificidade, nem intensidade total adequadas nessas práticas para o auge da performance no futebol profissional de alto rendimento.
Universidade do Futebol – Em se considerando a integração dos trabalhos físicos e táticos aplicados, nessa perspectiva, como você vê a inserção do preparador físico na comissão técnica daqui a alguns anos? Você acredita que existe chance de essa função perder sua aplicação?
Francisco Ferreira – Como disse, eu gostaria muito de assistir aos treinos do Mourinho para ver o que ele faz de tão revolucionário a ponto de dizer que não se treina mais a parte física isoladamente.
Eu acredito que a função do preparador físico que trabalhe (também) de forma isolada as valências físicas em vários momentos do calendário seja imprescindível. Ainda não creio que se possa atingir níveis ótimos de performance sem treinar na sala de musculação, sem treinar agilidade, resistência de força, etc. Assim, sinceramente, ainda não sei se a função preparador físico será realmente abolida no futuro.
Universidade do Futebol – Qual é a relevância da área acadêmica para o diálogo e para a melhoria da atuação do profissional de preparação física?
Francisco Ferreira – Relevância total! Penso que deve haver um casamento entre a teoria, a pesquisa e a prática. De nada adianta pegar um acadêmico daqueles “ratos de laboratório” e entregar-lhe o comando de uma sessão treinamento, da mesma maneira, em relação ao sujeito apenas prático e que não pega um livro, não procura se informar, ou, no mínimo, se cercar de profissionais competentes nas áreas de fisiologia, fisioterapia, nutrição, etc.
Na verdade, ninguém é uma “ilha”, ninguém sabe tudo. O envolvimento com a comunidade acadêmica é, portanto, imprescindível.
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