QUAL ERA O SEGREDO DO FUTEBOL BRASILEIRO?
Perguntas: Por quê o nosso futebol alcançou tanto destaque em décadas passadas? Por quê foi o futebol mais vitorioso, mais técnico, mais vistoso, mais bonito, mais “alegre”, criativo e habilidoso? Por quê chegamos a ser cinco vezes campeões do mundo?
Por quê tivemos Pelé, Romário, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká entre os jogadores eleitos como melhores do mundo, alguns destes por mais de uma vez? Por quê produzimos craques em profusão como – além dos já citados – Garrincha, Didi, Tostão, Ademir da Ghia, Rivelino, Zico, Sócrates, Falcão… e éramos também, nas últimas décadas, um “celeiro” de bons jogadores que abastecia o milionário futebol europeu? Por quê o Campeonato Brasileiro era tido como o mais equilibrado do mundo, quase sempre com um número razoável de equipes em condições de vencê-lo, diferentemente da maioria dos outros países em que existem apenas dois ou três grandes clubes?
Como era a formação de nossos craques?
O componente ambiental-cultural
Vejamos os componentes externos, aqui chamados de fenótipo e que envolvem os aspectos de: Treinamentos, experiências, nutricionais, sócio-culturais, geográficos e clínicos.
O Brasil talvez seja um dos países mais afetados pelo fenômeno futebol, sendo este, talvez o seu maior patrimônio cultural. Em época de Copa do Mundo, nos jogos da seleção brasileira, o país literalmente para!
Muito do nosso sucesso futebolístico se deve também ao contexto de nossa história, incluindo aí, especificamente, a história deste esporte no Brasil. Quando Charles Muller, retornando de seus estudos na Inglaterra, trouxe a primeira bola e os primeiros uniformes, encontrou aqui as condições ideais para a prática e a adesão foi instantânea: País de clima tropical, ou seja, o futebol poderia ser praticado em qualquer época do ano sem as restrições dos rigorosos invernos do hemisfério norte (exceto talvez em um ou outro período do inverno da região sul); havia muito espaço para a prática, inclusive nas cidades grandes; um povo sedento por novidades, musical, alegre, de espírito aberto e ávido por um jogo que se mostrou extremamente democrático, pois tem regras fáceis de entender, é barato, pode ser praticado em qualquer lugar e por qualquer pessoa. Como paixão nacional estabelecida e sendo a atividade principal de lazer do povo, a quantidade de gente que joga bola no Brasil era, e ainda é muito grande, daí ter sido este também um dos motivos de sempre surgirem tantos bons jogadores: Quanto maior a oferta de matéria prima, maior seria o número de selecionados de boa qualidade.
Quanto ao contexto cultural-sócio-econômico, sabe-se que o menino pobre brasileiro já nasce tendo de superar as dificuldades e obstáculos que a vida lhe impõe. Ele brinca com aquilo que estiver ao seu alcance: seja uma lata, pedra, pau, etc.. Ele cresce livre e solto: Corre, salta, pula, rola! Brinca, briga, machuca, sara, bate, apanha! Pula o muro, sobe em árvore pra pegar fruta no quintal do vizinho, nada no rio, na praia, na lagoa, no açude; corre no pasto, corre de boi bravo, toca boiada… Trabalha na rua pra ganhar uns trocados. Joga bola no terreno baldio, na rua, na quadra, no pasto, na areia da praia… É piso seco, é molhado, é no paralelepípedo, é cheio de montinho; na subida, na descida, cheio de buracos!
A bola é grande, é pequena, é dura, é mole; bola de meia, bola furada, murcha, oval, com caroço, bola que quica, que não quica, que vem redonda, vem “quadrada”, imprevisível! Ele joga descalço, sente a bola com os pés, joga de tênis velho furado, de chuteira surrada, joga “controle”, “dupla”, “paulistinha”, “rebatida”, pelada, “ranca”; joga sozinho, 1×1, 2×2, gol a gol, “bente altas”, brinca de “embaixadinhas”, joga bola mesmo que não haja uma bola!!! É o jogo informal, onde nada é padronizado ou homogêneo: local, piso, bola, número de jogadores, idade e tamanho dos participantes… É liberdade e improvisação pura! É a “Pedagogia da Rua”! É a “Escola informal do Talento”!!
E a miscigenação? Negro, branco, índio, mulato, cafuzo, mameluco… As dimensões são continentais com diferentes colonizações, culturas, crenças e tradições folclóricas com suas festas, danças, celebrações. São os sotaques, os pratos típicos, os tipos de alimentos encontrados em cada região, diferentes climas, relevos, vegetações. Tem samba, frevo, capoeira, tem a ginga, o molejo e o jogo de cintura, a malandragem, a esperteza! Pensa e decide rápido!
Tudo isto junto, é, em linguagem acadêmica: Psicomotricidade, aprendizagem motora proporcionada por uma vivência motora rica, variada e lúdica, desenvolvendo de maneira natural estratégias extremamente rápidas de percepção, processamento de informações e tomada de decisões. São os programas motores generalizados: Uma ampla gama de gestos motores armazenados no seu “HD” (sistema neuro-motor) que vão resultar em habilidade, agilidade, facilitadores da técnica, aguçada visão periférica percebendo de maneira mais rápida e precisa um maior número de estímulos/informações do ambiente para o processamento e a tomada de decisões. Essa rapidez de raciocínio alia-se à capacidade de improvisação e de adaptação. Tudo isto somado resulta na chamada inteligência específica… Gera um atleta técnico, inteligente e habilidoso! Capaz de encontrar soluções para as tarefas/problemas inerentes ao jogo com rapidez, precisão e economia de energia.
Resumindo: Nosso estilo de vida, nossas carências e nossa cultura fazem com que o menino tenha que “se virar”, que se adaptar, tenha que criar, se safar, ser rápido, esperto, achar soluções! A nossa cultura não só valoriza como até glamouriza isso. É a ginga, a malandragem, o famoso jeitinho brasileiro pra resolver tudo, infelizmente, nem sempre de maneira ética e honesta… É verdade!… Basta ver nossa classe política!
No histórico de vida de quase todo grande atleta de futebol estão presentes condições como as citadas acima, ou seja, geralmente, eles não estudaram/estudam a fundo, tendo assim mais tempo livre para praticar, aprendendo livre e naturalmente a “fazer misérias” com uma bola de futebol. Thierry Henry, jogador da França, fez um pronunciamento semelhante durante a Copa do Mundo de 2006, referindo-se à qualidade dos jogadores brasileiros.
Hoje em dia, com a diminuição dos espaços para a prática e o aumento da violência, consequências respectivamente da especulação imobiliária e do crescimento das grandes cidades, essas condições estão ficando mais raras. Elas ainda ocorrem nas cidades do interior, nas praias e nas zonas rurais. Nos grandes centros urbanos, alguns clubes e escolas bem estruturados têm procurado suprir esse aprendizado natural com a implantação dos cursos básicos de esportes.
Nesses cursos, baseados na IEU (Iniciação Esportiva Universal), as crianças passam por diversas modalidades aplicadas de maneira variada, lúdica, livre, criteriosamente pedagógica e progressiva para que sejam também prazerosas, especialmente entre os 6 e os 12 anos de idade, visando uma rica formação psicomotora que resulta em um amplo acervo / repertório motor. Assim, a partir dos 13 – 14 anos, o menino estará pronto para iniciar o treinamento técnico a ser aplicado de maneira sistematizada nas categorias de base de um clube de futebol já com uma incrível bagagem motora.
O componente genético
Como fatores internos, chamamos o genótipo ou, os aspectos hereditários: Biomecânicos, fisiológicos, morfológicos, cognitivos intrínsecos e emocionais. Ao observarmos as imagens de lances de jogadores como Garrincha, Pelé, Romário, Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, Neymar, etc., percebe-se que estes possuíam/possuem, também, excepcionais capacidades físicas que os faziam/fazem se destacar bastante em relação à média neste quesito, especialmente velocidade, força e potência muscular. Para atletas fenomenais como estes, não há como estabelecer mensurações sobre qual componente teve maior peso na formação de seus talentos.
O componente genético-hereditário, no qual o biotipo em todas as suas variáveis como peso, estatura, proporções corporais, estrutura óssea; somadas às características individuais do sistema neuro-motor como o número de fibras de contração rápida, número de neurônios, de sinapses e unidades motoras, grau de mobilidade articular, etc., envolve também algumas características psíquicas que possam ser herdadas como: temperamento, personalidade, rapidez de raciocínio, timidez ou extroversão, medo ou intrepidez, etc..
Penso que atletas assim tão talentosos, são resultado de uma complexa interação de ambos os fatores: ambiental-culturais e genético-hereditários, sendo impossível estabelecer uma distinção exata e/ou prevalência de um componente sobre o outro.
Muito há ainda a se descobrir sobre o tema através de ciências recentes como o mapeamento genético, por exemplo, mas é certo que os grande talentos, os bem dotados, possuem algo de extraordinário no sentido de entendimento ou inteligência espacial que os fazem se destacar desde muito jovens. Entendem o jogo e tomam decisões acertadas que a maioria dos jogadores comuns não conseguem. São dierenciados.
Partindo destes pressupostos, acredito que o melhor que pais e/ou educadores físicos podem fazer pelos seus filhos/alunos em termos de aprendizagem motora, seria incentivá-los a brincar, a se divertirem, a viverem ao máximo todas aquelas atividades prazerosas e simples de uma infância saudável: correr, pular, rolar, saltar, jogar as chamadas brincadeiras de rua por puro prazer! É também muito gratificante para um pai ver a expressão de satisfação de um filho quando este está com os amigos correndo e brincando livremente. Invariavelmente, são experiências como estas, aquelas que ficam guardadas na memória afetiva dos adultos como algumas das recordações de seus melhores momentos de infância!
O que houve?
Mas, então, o que será que aconteceu de errado conosco? Porque os papéis se inverteram, com os Europeus sendo, hoje, aqueles que nos tem dado aulas de futebol, vide Copa 2014 com os humilhantes 7×1 da Alemanha contra o Brasil no histórico “Mineirazo” de 08/07/2014?
Nossas estruturas política e de gestão do futebol não evoluíram a contento! Continuam ultrapassadas, viciadas, enferrujadas, ineficientes! Nós até temos ainda a escola natural do talento, a chamada “pedagogia da rua”, ainda presente, como citado, nas cidades do interior, nas nossas praias e áreas rurais, mas os europeus evoluíram muito na chamada “escola do jogo” e, nesta, nos deixaram para traz. Criaram gerações de atletas rápidos, técnicos e inteligentes (táticos), que compreendem profundamente o jogo. Nós paramos no tempo e ainda ficamos esperando que nossos jogadores decidam os jogos em uma jogada individual… Fato cada vez mais raro! Aqui, treina-se muito! Mas priorizamos o treino físico em detrimento do treino sistêmico específico. Temos jogadores cada vez mais altos e fortes! O medo de perder e a busca pelo resultado imediato, desde as categorias de base, nos levaram aos chutões, à ligação direta, à trombada e à jogada aérea. Temos medo de reter a bola, antes, preferimos nos livrar dela, passá-la mesmo que seja “na fogueira” para um companheiro. Demoramos na tomada de decisões… Não somos precisos, não jogamos próximos, esquecemos o toque de bola… Naquilo em que éramos mestres, hoje recebemos aulas de Bayern, Barcelona, Borussia…
Olhando a história de nossos grandes times, tínhamos a habilidade e técnica refinada, aliadas à inteligência, ao toque de bola envolvente e preciso de jogadores fantásticos dos incríveis esquadrões de 58, 62, 70, 82… Os timaços do Santos de Pelé, Botafogo de Garrincha, Cruzeiro de Tostão, Palmeiras de Ademir da Guia, Atlético de Reinaldo, Flamengo de Zico, Inter de Falcão, São Paulo de Telê… Mas… e hoje? O que temos de especial?
O que precisa ser feito?
Precisamos urgentemente descer das torres da soberba e da arrogância, reconhecer que estamos defasados e que temos muito a aprender com nossos antigos “fregueses”! Futebol é para ser pensado, planejado, estudado, analisado e ter critérios… Não dá mais para ir levando apenas na base da intuição, experiência, improviso, malandragem e empirismo! Para tanto é preciso, com urgência, de mudanças estruturais, conceituais, filosóficas e de gestão profundas. Mudanças nas políticas e na legislação específica, alterando a natureza das entidades, a começar da poderosa e blindada CBF, entidade privada e “sem fins lucrativos” que fatura 400 milhões de Reais/ano, que comanda o futebol brasileiro com mão de ferro, não permitindo aos clubes autonomia para formarem, eles mesmos, as suas próprias ligas. Além disso, não há transparência, prestação de contas, nem priorização aos critérios de competência e capacitação técnica, antes, imperam os conchavos, o apadrinhamento político e as amizades.
CBF
A CBF deveria cuidar apenas das seleções! Deveria investir seus fartos recursos financeiros na popularização e democratização dos cursos de capacitação de treinadores reduzindo seu custo (mesmo que seja necessário subsidiá-los), regionalizando-os, e atualizando-os em termos de conteúdo técnico com equiparação aos cursos mais avançados da UEFA e outras Confederações. Em esforço conjunto com as Associações de Treinadores, CREFs e demais agentes, deveria tornar a capacitação técnica uma obrigatoriedade inegociável! Uma vez alterada a natureza das entidades, o sistema eleitoral da CBF e Federações estaduais deveria ser modernizado com a participação direta dos principais atores do futebol: presidentes das federações, dos clubes, dos treinadores e atletas da elite do futebol brasileiro, todos com poder de voto. Nos clubes, a participação direta dos associados e não apenas dos conselhos deliberativos, que são, por sua vez, verdadeiras panelinhas.
Quais foram os critérios utilizados para a efetivação de nomes como José Maria Marin, Marco Polo Del Nero, Gilmar Rinaldi, Dunga, Alexandre Gallo, Cláudio “Caçapa”?! Competência e capacitação técnica ou amizades, afinidades e apadrinhamento político? O que o Sr. José Maria Marin já fez pelo futebol brasileiro? Qual é a sua competência técnica para ocupar o cargo? O certo é que, enquanto a esfera política continuar onipotente em detrimento do mérito, currículo e capacitação/competência técnica, não haverá mudanças e o nosso outrora glorioso futebol brasileiro continuará a caminhar a passos largos para a falência, para a extinção de sua “Galinha dos ovos de ouro”, os clubes de futebol! Um modelo fadado ao fracasso a olhos vistos!
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