⚽ FUTEBOL PÓS-HUMANO (József Bozsik)

 (foto: PSG/Divulgação) 

Mais um brilhante texto do genial “József Bozsik”

Futebol Pós-Humano

“Eu acho que o que jogam hoje não é futebol, acho que é um novo esporte com a bola de futebol. Então, não é prazeroso mais para mim”[1]. Leão.

“A player moving where he wanted implies that there are game situations that I don’t control. Next year I want to check them all, without exception”[2]. Luis Enrique.

“The good thing is that Fernandez knows that if he doesn’t play back, I will change him. If the ‘keeper plays long, I will change him. This is what we have”. Enzo Maresca.

Désiré Doué passa o pé por cima da bola, “penteia” a bola como diriam os antigos, como um ritual de aviso, pois vai conduzi-la da extremidade ao centro. Imediatamente, o jogador por trás da linha da bola mais perto da linha lateral ataca a profundidade por fora; e o jogador adiante da linha da bola ataca a profundidade por dentro; outro fica na base da jogada. O georgiano “Kvaradona” recebe uma inversão de bola. Como destro, vai conduzir de fora para dentro. Nuno Mendes sai da base da jogada e ataca no “trilho” da linha de fundo, Fabian Ruiz ataca a profundidade por dentro, Dembele se movimenta para apoiar, Doué ataca o segundo pau. Os jogadores do PSG passeiam pelas zonas ofensivas pré-determinadas de modo que o desenho geométrico da equipe nunca mude, mas os jogadores estejam sempre trocando de zona.

O sonho de Rinus Michels era transmutar para o futebol uma estratégia coletiva perto da perfeição, que dominasse os espaços e fosse independente do caos da natureza, ou seja, tornar-se independente de ter ou não uma geração de jogadores talentosos. No entanto, o seu sonho não foi realizado em vida. Os seus times possuíam uma estrutura, mas os seus jogadores trocavam de zonas pré-determinadas com alguma espontaneidade. Cruyff era o fio solto que acionava o carrossel. Ele trocava de zona com Neeskens, com Rensenbrink, com o volante, com o lateral de acordo com sua intuição, sua imaginação, seu livre-arbítrio. Rinus criava uma estrutura para amparar essas trocas de zona ofensiva, mas os jogadores a exerciam com grande margem de autonomia.

O PSG é a concretização do sonho de Rinus Michels. Os seus jogadores trocam incansavelmente de zonas. Hakimi vai para a zona do meia-atacante, Fabian Ruiz entra na zona do ponta, Dembelé fica na base da jogada, Doué entra zona do 9. Para os olhares desatentos do público, essa troca pode ser uma linda expressão da espontaneidade humana. Todavia, essa troca intensa não é espontânea, e possui pouquíssima margem de autonomia. Todas as trocas são previamente treinadas, orientadas, repetidas, decoradas. Elas se repetem da mesma forma durante os jogos para os olhares mais atentos.

Essa história não é uma novidade. Em geral, os times posicionais sempre permitiram que os jogadores trocassem de zona ofensiva a partir da hermenêutica do terceiro homem, desde que mantivessem a estrutura da equipe. Ou seja, ainda estavam abertos para a interpretação do jogador e para a sua autonomia em trocar de espaço desde que não se desfizesse da geometria coletiva da equipe. Nos últimos anos, essa história vem mudando. No Manchester City, Guardiola cria cada vez mais mecanismos de mudança orientada de zona. Em alguns jogos, Gvardiol começa como lateral-esquerdo, faz uma saída de três e, logo, assume a zona da amplitude, enquanto o ponta-esquerda sai da extremidade para o centro, e um armador recua para receber a bola como terceiro-homem enquanto os outros dois (Gvardiol e o ponta) se movimentam. A troca de zona acelera a posse e dificulta a defesa. A troca de zonas aqui é pré-determinada, treinada, decorada. O Leverkusen de Xabi Alonso também foi outro time de grande destaque com o mesmo método. Todavia, o PSG tornou-se o símbolo maior desse novo futebol, desse “futebol pós-humano”, cada vez mais longe da espontaneidade e do improviso, e mais perto de uma repetição natural.

1. A Odisseia da Humanidade

Após as intempéries em Troia, Ulisses quer retornar para casa, mas o mundo natural expõe a vulnerabilidade humana, e o nosso herói precisa usar da sua astúcia para driblar o inevitável imprevisível do próximo segundo. O épico de Homero simboliza os dramas da humanidade. O mundo natural é, ao mesmo tempo, alimento e ameaça, ordem e caos, repetição e surpresa. Filho desse mundo, o ser humano é também incompleto, ausente, e obra a se construir.

Ulisses quer voltar para casa, mas esse retorno é também um símbolo dos dramas da humanidade. Retornar para casa é se fazer ser humano no sentido pleno da palavra. Para se fazer “humano”, Ulisses precisa ultrapassar as intempéries do mundo natural, as repetições e as surpresas do mar com os seus cantos, das forças incontroláveis representado por Cila e Caríbdis, da tentação de onipotência oferecida em Calipso, da brutalidade dos ciclopes. O mundo natural é um desafio para se fazer plenamente humano.

Ao contrário de leituras mais desavisadas, essa busca pela métis não significa dominar a natureza, mas aceitá-la e dialogar com ela. Ulisses só pode enfrentar as intempéries e as surpresas do mundo natural se não tentar destruí-lo. Ao contrário, ele deve se adaptar à natureza. Sempre perderemos para o mundo natural se tentarmos derrotá-lo, mas podemos nos adaptar a ele e ultrapassá-lo se dialogarmos. Fazer-se humano é aceitar a imprevisibilidade e as intempéries do mundo natural, jogar com ele, brincar, se relacionar, dar soluções criativas, improvisar, criar diante de cada segundo imprevisível. Fazer-se humano é ser autônomo.

Portanto, a grande arma de Ulisses não é derrotar a natureza, mas dialogar com ela através da astúcia. É isso que funda a autonomia, uma brincadeira de “criança” que vai nos tornando “adultos”. Cada obstáculo do mundo natural é uma oportunidade para improvisar, adaptar-se. O conforto, a simples aceitação do mundo natural, anularia a nossa humanidade, enquanto o confronto nos jogaria na violência, na destruição, na barbárie. Ulisses é o herói do improviso, do disfarce, da malandragem, do engano para salvar. Dialogar com o mundo natural é “jogar o jogo”, criar, improvisar. Por isso, fazer-se humano é conquistar essa autonomia, essa escolha do seu próprio “destino”. Ulisses mostra que ser humano é saber improvisar diante do mundo natural, não como seu inimigo, mas como parte dele.

Ao fazer-se ser humano, Ulisses recusa a imortalidade, aceita o caos, vira um amante da imprevisibilidade, sabe se locomover nesse terreno sem a ansiedade de quem deseja determinar o seu destino. Ulisses vira um amante da autonomia humana, da espontaneidade, do improviso, da astúcia, das soluções criativas. Autonomia é descobrir que somos vulneráveis, mas também criadores.

2. Futebol: jogo de seres humanos

O futebol sempre foi uma odisseia. Nenhum esporte demonstrou tão bem as intempéries e a imprevisibilidade da vida quanto o futebol. Um esporte praticado com os pés (parte mais imprecisa do corpo do que as mãos), com uma bola que desliza facilmente na relva e de quase impossível controle por muito tempo, num campo larguíssimo, com poucas regras, sempre foi um convite para o caos, para a surpresa, para o imprevisto, para a demonstração da incompletude humana. Em pouco tempo, o futebol se tornou o esporte com mais surpresas, “zebras”, lances surpreendentes, estéticas inimagináveis, superações inacreditáveis.

O futebol nunca desprezou a ordem. Pelo contrário, o futebol sempre respeitou o mundo natural ao não tentar derrotá-lo. Desde o amadorismo, o futebol foi desenvolvendo formulações práticas para organizar o jogo diante de regras tão largas do que fazer com uma bola num gigantesco campo. A perspectiva da ordem e as suas tipologias sempre foram múltiplas, mas todas convergiam para uma coisa: nenhum jogador perdia a sua autonomia. Mais inflexível ou flexível, mas espacialmente ordenada ou temporalmente ordenada, com ou sem zonas específicas, o jogador sempre teve um espaço de autonomia para interpretar, criar, improvisar. Cruyff improvisava na “laranja mecânica”, Pelé improvisava no Brasil de 70, Stoichkov improvisava no Barcelona de Cruyff, Ronaldo improvisava com a verde-amarela.

Na prática, quando Ronaldo pegava na bola, diante de Djalminha, Rivaldo e Romário, ele tinha noções básicas de organização na cabeça, mas ele poderia inventar uma relação com os seus companheiros, criar uma tabela, improvisar um drible, tentar um lançamento que não foi ensaiado. Os movimentos não eram pré-determinados. Ronaldo não teria que simplesmente executar mecanismos muito bem estabelecidos, treinados e repetidos. Ronaldo poderia improvisar pela direita, pela esquerda, estabelecer relações socioafetivas no campo, utilizar a sua autonomia para driblar o inesperado com a sua astúcia.

O futebol sempre teve ordem, mas os jogadores sempre foram Ulisses. Durante todo o século XX, o futebol era o esporte que mais necessitava da astúcia do indivíduo. Com a bola, os jogadores precisavam improvisar, criar relações com os companheiros, sair da estrutura, vencer os desafios da vida. Os indivíduos precisavam fazer-se “humanos” diante das intempéries no campo de futebol, diante do imprevisível, do fracasso, da perda, da dor. Eles precisavam inventar, ser astutos, driblar as dificuldades. Criando relações socioafetivas com os seus companheiros de jornada, o jogador de futebol era um Ulisses retornando para casa, jogando com o destino, brincando com o mundo natural, encontrando soluções deslumbrantes que acalentavam a alma dos espectadores.

Com a bola no pé, os jogadores sempre tomaram decisões por conta própria. Decisões coletivas e individuais surpreendentes. A espontaneidade era a alma do jogo. A autonomia era a autoria de um grande drible, uma grande tabela, a saída surpreendente e inesperada diante das dificuldades. E nós assistíamos aqueles “Ulisses” se safando das intempéries e da imprevisibilidade do mundo natural. Assistíamos apaixonados pela astúcia. O futebol era o esporte dos ídolos, dos jogadores, das grandes personalidades, porque os nossos heróis estavam se fazendo “seres humanos” definitivos com a conquista da sua autonomia.

3. Futebol Pós-Humano: jogo de estruturas

Há várias décadas, filósofos debatem sobre o limite entre o humano e a máquina. O avanço da biotecnologia, da engenharia genética, da cibernética, da inteligência artificial criou uma nova fronteira de possibilidades, onde o ser humano poderia passar por profundas transformações genéticas, implantes de chips para resolver problemas que pareciam insolúveis, e até sonhos distópicos como “mentes digitais”. O pós-humano é também um conceito crítico diante da possibilidade de manipulações genéticas para certas finalidades ou da submissão da autonomia e da inteligência humana diante de novas possibilidades tecnológicas, como uma arte feita sem a possibilidade de improviso. No futuro, um horizonte de expectativas se abre em torno de uma super inteligência artificial, de robôs com grande desenvoltura, de drásticas intervenções genéticas, e até de chips que curam doenças.

Essa profunda transformação também ocorre no futebol. Através do desenvolvimento de tecnologias e de novos métodos, o jogo com a bola tornou-se muito mais metódico, mecanizado e repetitivo. A estrutura de um time de futebol se parece cada vez mais com uma máquina, e os jogadores se tornam mais operadores do que intérpretes autônomos. Os corpos são plenamente disciplinados, e executam movimentos extremamente ordenados com e sem a bola, perdendo espontaneidade. Os times tentam operar com o mínimo possível de improviso. No lugar de Ulisses, os jogadores executam o método, seguem a estrutura, repetem o mecanismo. São corpos-máquinas e não criadores. Os novos técnicos implementam os seus sistemas, as suas estratégias, e tentam diminuir ao máximo o caos, o imprevisto, e a necessidade de improviso do jogador. O futebol feito para o corpo-máquina é o “futebol pós-humano”.

O futebol “pós-humano” não é “não-humano”. Na verdade, o futebol “pós-humano” é a necessidade do uso crescente de novas tecnologias para diminuir a necessidade do improviso, tornando o jogo mais uma competição entre estruturas do que uma competição entre seres humanos. Sem o improviso, a criatividade, as surpreendentes relações socioafetivas criadas num campo de futebol, o jogo se torna uma competição entre sistemas desenhados por demiurgos, entre corpos-máquinas disciplinados, que seguem um roteiro e o executam.

Novas tecnologias são usadas há décadas para estabelecer padrões e criar sistemas ofensivos que operem acima da espontaneidade do indivíduo. Todavia, o nosso presente — com dados ilimitados, algoritmos, estatísticas sofisticadas, vídeos integrados e inteligência artificial — parece um tímido começo perto do que está por vir nas próximas décadas. Com o desenvolvimento de uma super inteligência artificial e a sua sofisticação para esses fins, será muito fácil identificar os padrões mais imperceptíveis de um time de futebol, como também será fácil criar padrões para vencê-lo, e desenvolver métodos para que os jogadores ajam apenas como operadores do sistema. Nas próximas décadas, sem uma profunda reflexão crítica para uma transformação profunda, o jogo será cada vez mais uma disputa entre estruturas do que entre seres humanos.

O futebol atual é feito para excluir cada vez mais a espontaneidade, a surpresa, e o improviso. O jogo se tornou inimigo do imprevisível, numa busca insana por estabilidade, repetição e execução. Os jogadores perderam autonomia, mas já se adaptaram ao papel de corpo-máquina. Os técnicos brincam com a metáfora do “joystick na mão”, dão declarações sobre ordenar cada ação de seus jogadores no campo, e buscam cada vez mais uma estrutura dinâmica, mas coesa. Antigamente, a maioria dos craques não aceitariam esse papel, ficariam indignados com a perda da autonomia, com a falta de improviso, mas hoje a maioria aceita passivamente esse roteiro, quase como um alívio por não terem de ser responsáveis por sua própria autonomia. A idolatria navega do jogador ao treinador. Por exemplo, não é mais o Palmeiras de Ademir da Guia, mas o Palmeiras de Abel Ferreira.

O nicho de fãs do futebol também se adapta ao “pós-humano”. No lugar de assistir aos jogos e contemplar o talento, a espontaneidade, a criatividade, o improviso, as soluções miraculosas, vemos os gols, as assistências, as estatísticas, fazemos uma competição de Excel para decidir sobre o melhor jogador do mundo.

Ao disciplinar a dinâmica e o movimento, o PSG de Luis Enrique é o símbolo mais bem acabado do “futebol pós-humano”. Um time que se move incessantemente, em que os jogadores passeiam sem parar pelas zonas ofensivas, mas que faz isso de maneira incrivelmente metódica, sistemática, repetida, ensaiada, quase sem espaço para a espontaneidade, sem lugar para novos Ulisses. O “futebol pós-humano” é um esforço incessante para que o jogo seja menos caótico e mais ordenado, menos imprevisível e mais repetitivo, menos espontâneo e mais induzido.

4. As implicações éticas e estéticas do futebol pós-humano

Os resultados são como as marés. Eles vão e vem. A eficiência do “futebol pós-humano” diante de outras formas de vida não é o que me interessa, mas refletir sobre o impacto dessa transformação no presente e no futuro do jogo. Mais do que o placar, qual é a sustentabilidade do futebol enquanto “pós-humano” no longo prazo?

O técnico de futebol tornou-se detentor de um biopoder. Ele disciplina os corpos dos jogadores, os seus movimentos e reflexos em campo, e controla também a vida externa do jogador, da saúde ao sexo. As novas tecnologias vão permitir um aprofundamento do biopoder, não só em termos práticos quanto à vida social do jogador, mas também dos seus comportamentos dentro do campo. Cada vez mais, o corpo do jogador não é apenas controlado, mas otimizado, calculado, programado. Ele deixa de ser um Ulisses em busca de se fazer “humano”, e se torna apenas um projeto técnico-financeiro, um local, uma fronteira, um território para intervenção e modelagem. Uma mercadoria não só para ser vendida, mas para se comportar de acordo com a vontade do demiurgo que constrói uma estrutura. Esse novo futebol traz profundos dilemas éticos.

Ainda fará sentido falar em indivíduo aqui? Falaremos em jogadores ou apenas em coletivos programados? Analisaremos a arte do jogador ou apenas mediremos desempenho por algoritmos, máquinas e afins? No futuro, serão permitidas manipulações genéticas para se formar atletas? E implantes neurais? E a utilização de uma super inteligência artificial? Não seriam novas formas de eugenia? Todo esse discurso de disciplina do corpo não remete às piores violências da história?

As implicações estéticas também são óbvias. O futebol deixa de ser o esporte do imprevisível, perde força de entretenimento, torna-se uma arte de estandardização, perde o seu caráter épico. Os jovens já não se inspiram tanto em jogadores de futebol como ídolos porque já não enxergam no campo a astúcia que nos faz humanos.

Deleuze costumava dizer que não gostamos de coisas porque elas são naturalmente boas, mas que criamos explicações para dizer que tais coisas são boas porque queremos aquelas coisas. Então, por que dirigimos os nossos afetos para elas? O que criou essa potência? O futebol não se dirigiu por esse caminho por mera fatalidade, ou mero reflexo da contemporaneidade, mas porque o meio dirigiu o seu afeto para a construção do “futebol pós-humano”. Por que o meio do futebol seguiu esse impulso de bloquear a espontaneidade? Por que o ecossistema do futebol repele cada vez mais o improviso? A conclusão de um texto sobre o “futebol pós-humano” não poderia deixar de ser uma pergunta sem resposta.

[1] https://ge.globo.com/abre-aspas/noticia/2025/02/14/leao-diz-que-futebol-atual-da-sono-e-lamenta-roubo-de-r-20-milhoes-em-casa-orfao-do-meu-passado.ghtml

[2] https://x.com/maspositional/status/1894053523534266396

   

József Bozsik

Written by József Bozsik
Compartilhado por:
Francisco Ferreira 
Gestor de Futebol filiado à ABEX
ceperf.com.br
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