No livro “Pep Guardiola: A evolução”, seu autor, o catalão Martí Perarnau, cita este comentário de Raymond Verheijen:
“No mundo do futebol, a maioria das pessoas quer proteger o status quo tradicional porque tem medo de se equivocar. É uma subsociedade primitiva na qual não se tolera a crítica e onde as pessoas preferem preservar e defender ideias estabelecidas. O mundo do futebol não gosta das pessoas que questionam as demais porque isso incomoda, e ninguém gosta de se sentir incomodado. Obviamente, falta fazer muitas coisas de maneira inteligente no futebol”.
O próprio Perarnau vai além e cita por conta própria: “…estamos diante de um mundo voluntariamente obsoleto, fixado em paradigmas que caducaram, no qual grandes forças conspiram para que nada evolua e tudo permaneça estancado no clichê da comodidade. O FUTEBOL TEM UM MEDO ATÁVICO DE INOVAÇÃO.”
Concordo em gênero, número e grau! Acrescento ainda que, este conservadorismo, que se faz presente em todas as esferas do futebol, traz implícito um medo gigantesco de se mostrar as fraquezas, as vulnerabilidades, um verdadeiro pavor de perda de status e de poder. O mundo do futebol vive também muito de imagem, de marketing pessoal. Impera ainda muita vaidade e desconfiança. Na maioria das vezes, quem está bem empregado e/ou já tem nome, ou está desde sempre inserido nas altas esferas deste meio, na verdade está é se lixando para o que acontece no andar de baixo: os clubes pequenos do interior, os atletas que mal recebem um salário mínimo, os novos profissionais em busca de uma oportunidade de trabalho, os muito estudiosos, aqueles que contestam o status quo… Então, é cada um por si! É cada um preocupado apenas em resguardar seus interesses.
Assim, quando surgem novos conceitos, novas teorias, dessas que sacodem, que chegam para revolucionar e desnudar a falsa competência de muitos daqueles que dominam o meio, um verdadeiro pavor toma conta e, a princípio, vem o boicote, o ignorar, ou até mesmo o banimento daqueles que detém/apresentam este novo conhecimento. Este comportamento vem geralmente daqueles que não gostam de estudar, daqueles que acreditam ou tentam fazer os outros acreditarem que futebol é intuição, é lábia, é “experiência” e que, por serem bons nisso, vendem a impressão de que são competentes e capacitados para estarem permanentemente presentes na roda dos profissionais de futebol que estão sempre empregados, a “roda do poder”. Em muitos lugares, quem estuda muito é visto como uma ameaça… Algumas vezes chega a ser desanimador e dá até vontade de desistir de continuar tentando mudar um mundo que não deseja ser mudado!
O futebol ainda “aceita tudo”! Já trabalhei com um preparador físico que inventou de dar em uma sessão de treinamento em Outubro, numa 3ª feira, séries de tiros de 400m!!! Detalhes: 1º) Teríamos jogo dois dias depois, na 5ª feira, no Engenhão contra o Botafogo, ou seja, 48h após este treino, com os jogadores no auge da dor muscular. Nem é preciso dizer que o time “andou” em campo e perdemos por 4×1; 2º) Nunca havia dado este tipo de treino ao longo de toda a temporada e decidiu aplicá-lo já no final da mesma; 3º) Um treino nada específico e com altíssima demanda muscular… Pois bem, este mesmo preparador está por aí, ano após ano, empregado em grandes clubes do país, simplesmente porque é “pessoa de confiança” do treinador…
Como o próprio Verheijen cita na sua “Teoria do Futebol”, que é uma introdução para os conceitos da sua teoria da Periodização do Futebol, temos quatro estágios progressivos do conhecimento/competência, que seriam:
1º) *Inconscientemente Incompetente: Nós “nos achamos” e nos estribamos em nossas próprias experiências/vivências, sem possuir referências objetivas, apenas sensações, opiniões, “achismos”;
2º) *Conscientemente Incompetente: Descobrimos e reconhecemos, após um curso como o Football Periodisation, por exemplo, que nosso conhecimento era baseado em subjetividades;
3º) *Conscientemente Competente: Passamos a valorizar, estudar e aplicar os novos conhecimentos adquiridos;
4º) *Inconscientemente Competente: Com o estudo e a prática, acabamos por nos tornar não somente experts neste tipo de conhecimento revolucionário, inovador mas, ainda mais: Nos tornamos construtores/aperfeiçoadores/desenvolvedores até, deste próprio conhecimento.
Vejo na sociedade brasileira, e no futebol brasileiro por extensão, que o debate não é muito aceito. Qualquer confrontação de ideias ou conceitos é levada, com uma facilidade inacreditável, para o campo pessoal. Somos extremamente políticos, aceitamos tudo sem questionar. Não temos uma cultura crítica e franca como é inerente à cultura europeia e norte-americana, por exemplo. Há muito melindre, muito receio de desagradar poderosos e assim acabou que nos tornamos essa nação subserviente e medrosa! Apenas os poderosos, os famosos, os que já possuem seus nomes consolidados, podem emitir opiniões contraditórias, mesmo assim, sem muito radicalismo.
Não estou defendendo grosseria, destempero ou falta de educação – porque até nisso nós erramos, partindo logo pra ofensa ou bate-boca (igual debate político na TV em época eleitoral: não há propostas, mas uma fixação nos ataques aos supostos podres e erros do adversário) – mas nos programas de esporte, com participação ao vivo, os treinadores convidados quase sempre são extremamente políticos, polidos, praticando uma clara troca de afagos e elogios… Quase nunca há um confronto ou debate franco, que, desde que realizado em alto nível, no campo da ideias, seria muito mais interessante!
Dentro do futebol, identifico uma divisão muito clara entre o conhecimento acadêmico, extremamente técnico e não específico, com verdadeiros “ratos de laboratório” publicando pesquisas e mais pesquisas sem uma real utilidade prática imediata… Essa nunca foi a minha praia! Sem criticar quem gosta, não me satisfaz ou seduz a formalidade extrema do ambiente acadêmico da pesquisa. Pelo contrário, gosto da fluência e certa informalidade da observação e da explanação dos fatos na linguagem específica do futebol. Do outro lado temos os ex-atletas que, inseridos no nosso contexto que confunde “gostar” com “entender”, os levam a acreditar que realmente entendem e conhecem de futebol mais do que todos os outros por causa da experiência/vivência prática.
Ninguém conseguiu aqui no Brasil, até hoje, desenvolver uma teoria sistematizada do conhecimento relativa ao futebol. Vejo algumas iniciativas aqui e ali por parte de alguns pesquisadores, mas ainda é muito pouco! Precisamos de muito mais!
Esta é uma das razões de, assim como fizemos após a Copa 2014, continuarmos investindo, insistentemente, quase como abnegados, na vinda de profissionais como o próprio Raymond Verheijen, mentor da WFA e da teoria da Periodização no Futebol, formulada e embasada exclusivamente em estudos da realidade prática do futebol, sua teorização e aplicação.
No mesmo sentido estamos investindo agora também na vinda do australiano Tim Gabbett, o “Papa” da área do controle de cargas, pois percebemos que ninguém aqui sabe como fazer, tateamos no escuro, tentativa e erro na dosagem de cargas exatamente por não termos desenvolvido, sistematizado ou teorizado algo neste sentido. Ainda engatinhamos na área da pesquisa no futebol nacional. Tudo bem que é melhor do que nada, pois sabemos que não há uma cultura de investimento na pesquisa, mas enquanto isso não acontece de modo mais efetivo, continuaremos tentando, por conta própria, fazer essa revolução silenciosa, trazendo profissionais como estes, que são, simplesmente, dois dos maiores expoentes mundiais da área do treinamento esportivo!
Contamos com a divulgação de vocês, leitores!
Saudações!
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