⚽ CRUZEIRO SAF E MODELOS DE GESTÃO

CRUZEIRO SAF E MODELOS DE GESTÃO

Estudando sobre os modelos de gestão e suas características dentro do futebol brasileiro e mundial nos últimos anos, pude perceber que alguns clubes conseguiram chegar próximo do que se pode considerar como ideal, dentro daquilo que é possível, por conta dos inevitáveis e inúmeros fatores externos, muito comuns, principalmente no caso do futebol brasileiro mais especificamente.

Acostumados que estamos, desde sempre, ao domínio onipotente da esfera política em detrimento das esferas técnica e da gestão propriamente dita, a percepção é de que o advento das SAFs parece estar fadado, cedo ou tarde, se não a botar um ponto final, pelo menos a diminuir drasticamente essa cultura atrasada, muitas vezes nefasta e lesiva aos clubes.

No Cruzeiro SAF, Ronaldo se cercou de gente realmente capacitada e, junto com seu fiel escudeiro, Paulo André, pessoa que desde os tempos de atleta já se mostrava antenado e sedento por conhecimento, vai trilhando um caminho bem “pés no chão”, mas com toda “cara e cheiro” de sucesso! Paulo André fez curso de gestão esportiva na PUC-MG e teve participação ativa em fases recentes da gestão do Athletico PR, onde aprendeu e também ajudou a consolidar o ousado modelo do clube paranaense, na minha opinião dos mais modernos do país já de longa data, com sua cultura interna de ousadia e até mesmo de rebeldia, que não se conforma com o “mais do mesmo” dessa mediocridade viciosa reinante no futebol brasileiro. Muito do que se faz hoje no Cruzeiro é inspirado no que PA vivenciou no CAP.

Convicto estou, de que existe um trinômio que embasa uma gestão de futebol eficiente, que seriam as gestões de excelência na área do RH, na área FINANCEIRA e na área TÉCNICA. Isto deveria ser entendido como um “bê-a-bá” de gestão do futebol, nível “Massinha Elementar II”! Já o nível “Massinha Elementar I”, seria simplesmente gastar menos do que arrecada! Existe também uma regra informal que preconiza que, uma gestão saudável, deve operar dentro do limite de se gastar no máximo 70% de suas receitas totais com o futebol. 

Senão vejamos: Qual é, invariavelmente e com as devidas exceções, o quadro geral dos clubes no futebol brasileiro? Resposta: Legislação esportiva ultrapassada; domínio da esfera política nas entidades privadas sem fins lucrativos (modelo associativo); passionalidade; amadorismo; baixa eficiência; clubes inchados e usados para fins políticos e de perpetuação no poder; baixa transparência que pode levar à corrupção em alguns casos; endividamento sem fim…

Esmiuçando cada pilar deste trinômio acima citado, pilares que estão fortemente interligados e que são trabalhados quase que simultaneamente, temos que: O enxugamento da máquina e a contratação de profissionais de excelência, mediante os critérios da meritocracia e do currículo, entrevistas minuciosas e processo seletivo rigoroso em busca da eficiência, tendem a aniquilar a política do cumpadrio, do apadrinhamento, do cabide de emprego! O Cruzeiro mesmo tinha quase 900 funcionários!, que já foram reduzidos para 200 e com muito maior eficiência! Quantos não são os clubes que possuem funcionários com 40, 50 anos de casa? Muitas vezes estão ali apenas como caridade, ou por serem parentes/protegidos de algum conselheiro influente, ou por terem sido ex-atletas, ídolos do passado!

Então… enxugamento, austeridade e saneamento financeiro (minimização de custos/maximização de receitas…) contemplam a busca por eficiência e por reconstruir uma imagem de credibilidade, de bom pagador, de empresa que honra compromissos. Neste sentido, o clube sobe de patamar/conceito perante os seus stakeholders. Passa a ser, de pária, a parceiro desejável!

Por fim, a gestão técnica, aquela que realmente aparece e que é a razão de ser de um clube: o Futebol! Tendo como alicerce/fundamentos os já mencionados RH de excelência e gestão financeira também de excelência, busca-se no mercado, através de exaustiva pesquisa, profissionais de excelência ou com potencial, que sejam economicamente viáveis, mas ao mesmo tempo, que tenham perfil de acordo com fundamentos que o clube considera como “inegociáveis”! Trata-se da bússola, dos valores que norteiam o projeto, que muitos chamam de o DNA do clube! Uma definição muito clara e bem definida de qual é a sua escola, a sua marca, o seu modelo de jogar futebol! Em suma: Saber quem você é, o seu tamanho, onde você se encontra, onde você quer chegar e como fazer para chegar. Daí se parte para o “com quem vamos conseguir chegar”! Análise de mercado eficiente é hoje uma ferramenta de extrema importância para este tópico.

Este Projeto Técnico, deve ser acima de tudo consistente! Neste sentido, o investimento em Ciências do Esporte é imprescindível, incluindo aí a obediência a certos princípios do treinamento esportivo, sendo um dos mais importantes o princípio da continuidade. Isto significa convicção e firmeza de propósitos para que os processos, prazos e metas sejam desenvolvidos e alcançados no devido tempo. Não existe mágica ou milagres, mas uma lógica de progressão e desenvolvimento que deve ser respeitada. Talvez este seja o ponto mais sensível, ainda mais quando se trata de clubes de massa, onde a pressão por resultados imediatos vem de todos os lados (torcida, mídia, conselho, investidores…) e o tempo todo! Exige-se resultados “para ontem” e poucos se importam com o projeto em si e suas etapas. É essa convicção no projeto que dá a garantia da continuidade mesmo que não haja resultados imediatos, pelo contrário, a visão é racional, de médio e longo prazo, entendendo como uma obra, uma construção, que ainda não está pronta. Tijolo a tijolo, um passo atrás do outro, sem atropelos, com base consistente para que no devido tempo esteja pronto e sólido. Projeto autossustentável que assegure a construção e consolidação do que chamamos de Ciclo Virtuoso do Futebol: 1) Arrumar a casa, estabelecendo rumos, prazos, metas e também as condições para honrar compromissos; 3) Montar equipe técnica de excelência; 4) Crescer sem atropelos, de modo sustentável e responsável, suportando pressões; 5) Formação de boas equipes; 6) Aumentam as probabilidades de se fazer boas campanhas; 7) Aumentam as probabilidades de conquistas; 8) Aumenta o retorno $$$ e institucional; 9) Reinvestimento no modelo… = CLUBE VENCEDOR e AUTOSUSTENTÁVEL!

Analisando os modelos vigentes no futebol brasileiro, temos hoje alguns clubes com as figuras dos mecenas. Na verdade sempre houve: Muitos clubes invariavelmente eram/são dirigidos por algum conselheiro ou grupo de conselheiros ricos, sempre chamados a colocar dinheiro dos próprios bolsos para socorrer nas horas difíceis, assim como sempre tivemos também figuras desonestas, aproveitadores que se enriqueceram às custas do clubes. Pois bem, a simples menção de que pessoas colocam dinheiro do próprio bolso para socorrer seus clubes já indica que não são eficientes e/ou sustentáveis, concordam?!

Me pergunto: Atlético e Palmeiras, caso os 4Rs (MRV/BMG/Mater-Dei) e a Leila (Crefisa), respectivamente, saiam e/ou resolvam cobrar o que investiram… o que será desses clubes? Sei que o Atlético está num buraco de 2Bi de dívidas e que se não conseguirem um investidor pra comprar a SAF com urgência… não vai ficar nada bem!

O Flamengo é um ponto fora da curva. Depois do exemplar choque de gestão da administração Bandeira de Mello, conseguiu atingir um patamar de arrecadação digno de clube médio-grande do futebol europeu, mas sua atual gestão do futebol me parece que vem apenas “nadando de braçada” na fartura de $$$! Muito $$$, significa elenco qualificado, então vai meio que neste embalo e quase sempre está conquistando alguma coisa, mas não é nem de longe uma gestão de excelência no aspecto técnico, exceção da fase Jorge Jesus, em que houve um casamento perfeito e tudo deu certo!

Assim foi também com o Atlético de 2021… os bilionários fizeram jorrar $$$, montaram elenco estrelado, conquistaram tudo… mas… a que preço? 20Mi de folha, dívida aumentando na ordem de 200Mi/ano só de juros… queriam competir com Flamengo e Palmeiras mas arrecadando menos de 1/3 do que estes?! Insanidade! Sua dívida saltou de 756Mi em 2019, para 1,57Bi em 2022 (sem contar os 400Mi do estádio)… A conta chegou! Sempre chega!!! Absolutamente insustentável! Seus dirigentes dizem ter uma perspectiva de SAF milionária para breve, mas caso não se concretize, o futuro breve é simplesmente tenebroso!

O Palmeiras, tem projeto técnico muito bem consolidado. Um dos melhores trabalhos de base, e conta com o treinador mais caro e bem sucedido do futebol brasileiro na atualidade. Sua mecenas, Leila Pereira, dona da Crefisa, acaba de comprar um avião para os deslocamentos do time. Trata-se de um passo ousado e que certamente trará retorno técnico dentro em breve pois, em um país com dimensões continentais e ainda disputando jogos de Libertadores, vai conseguir eliminar ou pelo menos minimizar o desgaste provocado pelas conexões e os “chás de aeroporto” dos voos de carreira, o que auxilia em muito na preservação da integridade física e recuperação fisiológica do atletas entre os jogos.  

Bem, fazer gestão do futebol tendo carta branca pra contratar quem quiser, pra mim é muito fácil! Basta contratar jogadores da “prateleira de cima” no mercado e trabalhar o ambiente (“vestiário”). Aí até a minha avó, meu jovem!!!

O Grêmio me parece que tem contas equilibradas e vive até hoje da bonança da grande safra que revelou na base e vendeu a bom preço na esteira da conquista de Libertadores/2017. Seu projeto técnico peculiar e personalista na medida para Renato Gaúcho até que dá pro gasto no âmbito doméstico… mas é só!, e morder uma Libertadores de vez em quando é exceção e não regra! Outros clubes seguem modelo, até onde sei, sustentável e responsável em maior ou menor grau (Cuiabá, Fortaleza, Bahia, América-MG, Atlético-GO, Bragantino, Goiás, Ceará… a Chape de antes do trágico acidente…). O Botafogo parece ter apostado na continuidade e começa a colher frutos de sua nova mentalidade SAF. Fluminense tem projeto técnico de excelência, mas assim como Santos, Inter, Corinthians e São Paulo, enfrenta limitações financeiras desde a saída da Unimed… Vasco vai tentando se ajustar ao modelo SAF. Coritiba aposta na SAF em vias de implantação… Porém, o modelo que sempre me encheu os olhos é mesmo o do Athletico-PR de seu emblemático presidente Petraglia. (vide texto em destaque abaixo):

“VISÃO & PROPÓSITO: Um dos mais marcantes exemplos de gestão ousada e inovadora vem do Presidente Mário Celso Petraglia, do CLUB ATHLETICO PARANAENSE, que por volta de 1995, era considerado um clube pequeno se comparado aos grandes dos maiores centros. Começou nesta época inovando com as alterações na identidade visual, como a camisa com listras horizontais e o escudo que eram meras cópias do  Flamengo. Estas alterações levaram a um reposicionamento da marca e ao fortalecimento de uma identidade própria, gerando diferenciação, empatia e adesão. Depois vieram: Mudança do local onde mandava seus jogos; Investimento efetivo em ciências do esporte à partir do final da década de 90, que culminou com a conquista do Brasileirão de 2001. Um grande salto no patamar do clube e que continuaria ocorrendo com os fantásticos CT do Cajú e Arena da Baixada. Há ainda a recente alteração no próprio nome e novamente no escudo, passando então a Club Athletico Paranaense e assim, dissociando-se do seu homônimo (Atlético Mineiro), o que levará a uma diferenciação que facilitará a sua identificação em nível mundial. Sua cultura interna de ousadia, inovação e até mesmo rebeldia, o colocou na vanguarda como primeiro clube a: Construir uma arena que realmente oferece conforto aos seus torcedores; grama artificial de última geração; estádio 100% coberto, dentre outros. Portanto, diante de tanta ousadia e inovação, a sua meta de, dentro de 10 anos, estar disputando uma final de Mundial Interclubes, com 60% de seu elenco formado no próprio clube, e se tornar o clube mais atraente para investidores, não deve ser menosprezada! Sua gestão está à frente dos demais clubes brasileiros também por conseguir se manter superavitário desde 2012, além de já investir em Ciências do Esporte há bastante tempo e agora em conceitos como inteligência artificial, big data, machine learning, transformação digital, etc. De clube pequeno-médio a clube grande com estrutura simplesmente invejável!”

Assim me parece caminhar também o novo Cruzeiro SAF de Ronaldo & Cia. Ousado e fortemente auto-identificado. Vai melhorando e atualizando suas estruturas com a Toca da Raposa 2 assumindo ares de primeiro mundo. Já colhe até mesmo resultado esportivo que veio de modo quase imediato com a conquista incontestável da Série B pelo extremamente eficiente time de Paulo Pezzolano, e agora se repetindo de modo também surpreendentemente rápido com o treinador português Pepa. Elenco modesto mas com potencial de competitividade, a baixo custo, dentro da realidade de austeridade praticada pelo clube, vai crescendo e se consolidando jogo a jogo com um futebol muito bem organizado e intenso/competitivo.

Sim, analisando hoje, parece que Ronaldo fez um negócio da China! Negócio de ocasião, assumindo, dentre outras obrigações: uma dívida de 1Bi, mas com possibilidades reais de ser reduzida em algo em torno de até 40% quando finalmente aderirem ao regime de recuperação judicial; obrigatoriedade de aporte de “meros” 400Mi ao longo dos próximos 5 anos, mas que poderá ser contemplado através do incremento de receitas que ele conseguir para/através do clube; leva ainda de lambuja os dois ótimos CTs (Tocas 1 e 2) e uma torcida apaixonada de 9 milhões de torcedores que já mostrou que abraça o clube ao lotar o Mineirão em praticamente todos os jogos na Série B do ano passado! Analisando por outro lado a associação Cruzeiro EC, esta estava com a corda, a faca e o revólver no pescoço! Era aceitar o que Ronaldo oferecia, ou fechar as portas! Não havia saída!, tamanho o estrago que uma gestão criminosa havia infligido ao clube!, simples assim! Então, considerando que o torcedor não está nem aí para patrimônio, clube social, e coisas do tipo… antes, o que lhe interessa é time de futebol, o Cruzeiro EC, ou simplesmente Cruzeiro que é muito mais do que um mero clube, mas uma entidade icônica no imaginário de seus milhões de torcedores, acabou por fazer sim, um ótimo negócio! Logicamente que, se não estivesse naquela situação tão fragilizada, pré falimentar mesmo!, os valores seriam outros.

O clube hoje está nas mãos de, seguramente, um dos 5 maiores jogadores da história do futebol, uma lenda que tem trânsito até mesmo com chefes de Estado no mundo inteiro… não poderia haver nome melhor! Caso o Cruzeiro faça boas campanhas, o poder de penetração do nome Ronaldo se encarrega de fazer do clube notícia mundial! O advento iminente de uma liga nacional de clubes e a consequente internacionalização das transmissões, pode fazer disparar os valores em termos de faturamento, caso a exploração das marcas/imagens de Cruzeiro/Ronaldo sejam bem executadas. Aí que está o grande diferencial: a facilidade para se poder divulgar a grife Ronaldo/Cruzeiro globalmente. 

Logicamente que, com os ajustes e acomodações das SAFs, os clubes que virão na esteira fatalmente farão melhores negócios em termos de aporte financeiro, mas em termos de nome com representatividade no meio futebolístico, acho que o Cruzeiro pegou o melhor que se poderia imaginar. É o fator de “ser o primeiro a beber da fonte”!

Enfim, um modelo de gestão semelhante, que defendo há muito tempo e que acho que consegui expor de modo bem didático é o descrito neste artigo que publiquei em 2016 sobre o sucesso de então do modesto Leicester City: https://ceperf.com.br/2016/05/08/leicester-city-a-ciencia-por-tras-do-futebol-faz-com-que-a-bola-nao-entre-por-acaso/

 

Francisco Ferreira

Gestor de Futebol

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2 Comments

    • Claiton Fernandez
      maio 8, 2023
      10:26

      Perfeita reflexão meu amigo e excepcional gestor de futebol Francisco Ferreira! Compartilho com toda a essência de conteúdo que nos trouxe e do qual também sou defensor há alguns anos, defendendo todo o contexto profissional do futebol em programas de TV, rádio e jornais. Tenho a certeza que os clubes de futebol estão passando por uma quebra de braço entre o velho e o novo. Quando os clubes se estruturarem e conseguirem aliar e integrar a gestão administrativa (RH, finanças, planejamento estratégico) com as 4 linhas (o futebol), eles se tornarão autossustentáveis, fortes, independentes e profissionais na sua plenitude. Aí, voltaremos a brilhar no cenário mundial e voltaremos a ser imbatíveis Forte abraço!

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