TALENTO x INTENSIDADE
Andando meio inquieto nos últimos dias, tenho lido quatro livros simultaneamente e recomendo com ênfase todos eles: “Periodização Tática” (Bruno Pivetti); “Football Coaching Theory” (Raymond Verheijen); “O Jogo Interior do Tênis” (W. Timothy Gallwey) e “Além da Ordem” (Jordan B Peterson). As leituras simultâneas destes autores geniais têm me proporcionado uma maior clareza sistêmica de onde consigo depreender sentido e reflexões em comum no que se refere à complexidade humana e do mundo, assim como uma simplicidade e lógica também inerentes. Assim, hoje vou abordar dois temas distintos, mas que estão intimamente interligados no futebol em lógica e complexidade: Talento x Intensidade.
Dias atrás, troquei ideia rapidamente com o amigo Fernando Diniz, o genial e correto treinador do Fluminense, a quem admiro muito como pessoa e profissional. Gosto muito da sua ousadia e visão, mas me preocupa a idade avançada de seu elenco atual… e que aumentará ainda mais com a chegada do cracaço Thiago Silva (39 anos), na minha opinião, nome obrigatório numa Seleção Brasileira de todos os tempos!
Pois bem, tempos atrás, ao participar de dois cursos do Verheijen no Benfica, fui visitar um amigo que estava atuando como diretor do GD Estoril Praia e ele me falou de um estudo que eles mesmos fizeram lá em Portugal, que mostrava que elencos com média de idade superior a 28 anos aumentavam em até 50% as possibilidades de rebaixamento… e que, exatamente por essa razão, os clubes de lá estavam investindo cada vez mais em elencos mais jovens, principalmente com jogadores africanos, propositalmente numa busca pela aptidão à intensidade do jogo atual.
MENSURAÇÕES CARTESIANAS: Parâmetros como os índices de corrida intensa (>20km/h) e de sprints (>25km/h), facilmente detectáveis pela tecnologia atual, indicam essa aptidão ou não. Tendo a acreditar que, ter uns 2 ou 3 jogadores de idade avançada, mas que compensam em quesitos como qualidade técnica, experiência e liderança é aceitável, mas mais do que isso pode comprometer a sua competitividade.
PERFORMANCE INTENSA: Assistindo ao jogo Fluminense 2 x 2 Atlético, quando estava 2×0 para o tricolor, eles poderiam ter matado o jogo em um lance cara a cara que dificilmente o Cano perde. Ali, ao não converter, eu pensei: o Galo vai empatar! E não deu outra! Chamou minha atenção a diferença na intensidade entre os dois times e a imagem dos jogadores do Flu desabando em campo ao apito final! Não se trata aqui nem de comparar os excelentes trabalhos dos preparadores físicos do Galo, os amigos Cristiano Nunes e Marcelo Luchesi, com o dos não menos competentes Wagner Bertelli (aluno de um de nossos cursos com Raymond Verheijen) e Marcos Seixas, mas sim a constatação de uma enorme diferença de perfil entre ambos os elencos.
DILEMAS: Diniz argumentou que “sim, temos sempre que levar em consideração essas análises, que são práticas, factuais e muito importantes… mas para além delas existe “um mundo a ser destrinchado”. É tudo muito complexo, difícil e a mão da subjetividade pesa sobre tudo e sobre todos. Precisamos medir, aferir, compilar dados e, sobretudo, sentir”. No que também concordo com ele! Não dá para ser meramente dualista, tipo: “ou um ou outro”, dada a complexidade do tema. Já que não tenho como não concordar com ele, minha tese aqui é a de que, se o futebol permitisse substituições ilimitadas, como no basquete, por exemplo, ter elencos veteranos, mas talentosos como é o do Flu, faria com que essa defasagem em termos de intensidade pudesse ser minimizada.
O LADO HUMANO: O Diniz tem essa sensibilidade para tentar decifrar e extrair o melhor do lado humano de seus jogadores. Muitos não entendem isso dentro da cultura do “resultado pra ontem”, tanto que o tiraram precocemente do comando da seleção brasileira. Aliás, um idealista como Diniz tem muitos outros desafios com que se preocupar, como mudar o comportamento “suicida”, alegoricamente falando, de um jovem tão talentoso como o John Kennedy, por exemplo!
REFLEXÃO: como encontrar o equilíbrio entre essas duas questões, ambas fundamentais para um bom futebol e diante de tanta “multifatorialide”?… será que existe essa palavra? A questão do talento x intensidade passa necessariamente por: Escola da Rua/Bola (Aprendizagem Diferencial); Bilateralidade (jogos formais e educativos); Antecipação da tomada de decisão (“Rondos”); Hierarquia da tática e Conceito Diamante (tomada de decisão com contexto: passar a bola sempre ao pé dominante do companheiro); Football Braining (foco no jogo, sem se deixar afetar por fatores externos); DNA/mentalidade ousada e vencedora.
Jogadores de qualidade e experientes como Ganso, Cano, Marcelo & Cia, podem não ter mais o mesmo vigor de 10 anos atrás, mas é óbvio que sabem jogar e sabem encontrar atalhos. Aqui abro um parêntesis para o Fábio: é comum que o goleiro seja mais longevo na profissão dadas as características peculiares da posição, mas o caso do Fábio vem apenas comprovar o que detectou o mapeamento genético feito pelos fisiologistas do Cruzeiro à época, os brilhantes Eduardo Pimenta e Rodrigo Morandi: Um perfil de força raríssimo (~1 em 1 milhão), está lhe possibilitando estender sua carreira em alta performance por alguns anos a mais do que a média.
Mas voltando ao elenco tricolor… será que isso basta? Bem, o Flu conquistou a Libertadores do ano passado com méritos, mas eu sabia que não suportaria o vigor dos puro-sangue do City no Mundial. Aí se trata da lógica da seleção natural: o City tem bala pra contratar os melhores do mundo! O Flu fez o que lhe era humanamente possível!
TALENTO: GENÓTIPO x FENÓTIPO: Jogadores como Alex e Ganso nunca foram velocistas, mas sua extraordinária técnica e inteligência de jogo lhes fizeram sobressair onde quer que tenham jogado. Neste sentido, tenho debatido sobre a questão da seleção através do mapeamento genético em busca do perfil de intensidade apta ao jogo atual. Essa estratégia tem o seu lado útil que seria o de uma maior assertividade entre os medianos (lembrando que os craques são exceções e não a regra!), mas estando sempre atentos aos acima da média, mesmo que não possuam o perfil de força e velocidade.
DIFERENCIADOS: Entendo que um dos grandes diferenciais do verdadeiro talento é que ele toma a decisão sobre o que fazer e se posicionar ainda antes da bola lhe chegar aos pés e isso é algo que até pode ser treinado/aperfeiçoado… mas aquele verdadeiramente diferenciado já traz isso (ou o potencial pra isso) na sua bagagem desde a formação. Os famosos “rondos” e os jogos em campo reduzido, muito utilizados nos clubes europeus contribuem muito ao intensificarem a pressão tempo/espaço na execução, estimulando a rápida tomada de decisão e ao mesmo tempo demandando esforços de intensidade. Com a progressão criteriosa dos jogos reduzidos conforme preconizada pelos princípios da Periodização do Futebol, consegue-se também adquirir um estado ótimo de condicionamento e freshness (estado de não fadiga) para um “Jogar Futebol” em alto nível de rendimento ao longo de toda uma temporada.
COMUNICAÇÃO = TÁTICA: Já uma característica dos grandes times mundiais, além de reunirem muitos dos melhores TALENTOS [Inteligentes (Tática), Técnicos e Intensos (Físico)], é que são muito bem treinados. Seus jogadores desenvolvem, dentro da hierarquia que considera a comunicação (tática) – Princípio da Hierarquia do Futebol [C/D/E/F: 1º Comunicação+Decisão (Tática); 2º Execução (Técnica); 3º “Football Fitness”: Capacitação para o “Jogar Futebol” (o Físico como alicerce para todas as outras vertentes)] – como o primeiro princípio do futebol.
Sob uma outra perspectiva, mais brasileira, podemos considerar a aplicação da Tática subordinada ao talento, ou seja, elaborá-la, assim como também as estratégias de jogo, em função de explorar/facilitar o talento dos seus melhores jogadores, conforme defendem os competentes Geraldo Delamore e Alexandre Morango.
Junte-se a isso, a habilidade de se posicionarem quase sempre de frente para a bola – Conceito P/M/D/V (Posição/posicionamento + Momento + Direção + Velocidade) – e, também, de modo quase automatizado, a habilidade de quase sempre passarem a bola para a perna dominante de seu companheiro, expertise adquirida com treinos, habitualidade, familiaridade com os companheiros. Aqui, contextos se fazem necessários: para um atacante de área, o mais importante é receber a bola em seu pé dominante para num único toque fazer o gol; para um meio campista de construção/distribuição, seria importante receber no pé não dominante para ajeitar a bola pra um passe preciso e rápido com a perna dominante… (ideal mesmo seria que todo jogador fosse ambidestro!) – Conceito Diamante (montar os times para os jogos reduzidos sempre com jogadores do mesmo setor/proximidade/habitualidade). Sim, sistematizar e planejar os treinamentos de modo lógico para desenvolver uma qualidade de jogar em excelência, em “fina sintonia”, dá trabalho!
TALENTO: TREINO, OU GENÉTICA? Isto posto, vamos à pergunta que sempre fiz em minhas aulas: “Quem ensinou o Pelé a jogar”? Ele teve algum professor? Sim ou não?! Os professores de Pelé foram o campinho, a rua e uma infância riquíssima em vivências e experiências motoras lúdicas, livres e prazerosas na pequena Três Corações de décadas passadas, e que encontraram naquele moleque ávido por viver, o perfil ideal para um casamento também ideal entre o ambiente e a genética! Óbvio que o Pelé aprendeu e se desenvolveu, se aprimorou nos anos subsequentes no Noroeste de Bauru, no Santos e na Seleção Brasileira com a continuidade de suas vivências e observações: o que dá certo, o que não dá, os atalhos… Conselhos dos companheiros mais velhos e treinadores também podem ter sido úteis, mas serviram apenas numa pequena escala, na lapidação naquele diamante. Ainda assim, Pelé esteve sempre aprendendo! O livro “O Jogo Interior do Tênis” aborda a questão de modo bem interessante: Instrução (ouvir), demonstração (ver), ou execução (sentir/experienciar)? O executar livre e sem julgamentos próprios ou de terceiros se mostra o caminho mais assertivo para o aprendizado: o sentir! Indo além do mero conceito de “talento”, temos o “extra class”, o gênio, capaz de fazer o que outros nem conseguem ou imaginam, como Pelé e alguns outros raros jogadores. Eles sentiram, “leram” o jogo, o entenderam e vivenciaram como ninguém!
TREINO: Prof. Júlio Garganta da Universidade do Porto defende que o treino é que faz o craque! Mas aqui cabe explicar que: a infância de Pelé, foi também o seu treino! Informal, sem dúvida… mas treino/execução/repetição na melhor acepção da palavra! É preciso considerar o aspecto do treino informal na formação dos talentos.
SIMPLICIDADE, VARIABILIDADE E COMPLEXIDADE: Não me arrisco a dissertar sobre algo tão complexo como a “complexidade” como um Victor Frade, ou Bruno Pivetti, então, tento simplificar: 1) Botar mais bolas dentro da casinha do que o time adversário obedecendo às regras do jogo + encontrar o caminho mais curto até o gol adversário (Simplicidade); 2) Ter as experiências motoras do Pelé (Variabilidade); 3) Fazer com que todos os seus jogadores sejam um time organizado, consistente e superior dentro do contexto das infinitas interações que ocorrem no jogo: dos companheiros, do campo, do adversário, das regras do jogo, do regulamento do campeonato… (Complexidade).
VARIABILIDADE: Aprendizagem Diferencial (Alemanha/Espanha) + Abordagem Centrada no Jogador (Bélgica) = Sistematização da Escola da Bola/Rua: Vivência motora lúdica, livre, variada; Vivência Multiesportes; Iniciação Esportiva Universal (I.E.U.); Psicomotricidade; Experiências/vivências em Multiposições; Campos variados (terra; grama; sintético; areia; quadra…): Futsal, Soçaite, Beach Soccer…; Adequação por idade (Tamanho de campo, bola, traves; Número de jogadores; Tempo de jogo), Competir/Não competir… tudo isso com critério, controle de cargas e conteúdos adequados a cada faixa e, acima de tudo: COM PRAZER! SE DIVERTINDO!
TÉCNICA: Defendo a utilização de alguns minutos de cada treino para a execução técnica com total liberdade: Ousar, arriscar, tentar o novo, dar o drible, a jogada de efeito… brincar com a bola e os companheiros! Defendo também algo que pode ajudar a desenvolver tecnicamente seus atletas mas que nunca vi ninguém fazer: Treinos de bola parada: Cobrança de faltas, escanteios, pênaltis… para TODOS os jogadores! Quer coisa que exige mais técnica do que isso?
FOOTBALL BRAINING: Ou, o “Cérebro Futebolístico”, é um estado de total concentração no jogo, também treinável, que praticamente blinda a mente do jogador contra qualquer fator externo: torcida, erro da arbitragem, provocações do adversário, etc. Tem os mesmos princípios da performance intensa, alicerçada no mesmo raciocínio do “Football Fitness“.
“VIAGEM”: Imagine um time com 11 Pelés! Todos craques! Todos craques em suas posições: Pelé zagueiro, Pelé volante, Pelé lateral… acho que nenhum louco diria que ele não serve para alguma posição. O craque deve ser aproveitado/explorado em todo o seu potencial, e não tolhido. Outro dia conversei com o Zico brincando sobre uma Seleção Brasileira escalada pelo Ronaldo Fenômeno, que só tinha atacantes do meio pra frente, e ele me disse: “Eu daria um ótimo cabeça de área”! Cada vez mais, os clubes de ponta adaptam jogadores de melhor qualidade técnica em posições que não são as suas de origem, pois isso é muito mais fácil do que fazer um jogador já formado, especialista da posição, mas limitado, conseguir uma substancial melhora técnica.
Saudações!
Francisco Ferreira
Gestor de Futebol
ceperf.com.br
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